O preto-no-branco de Venâncio
Seguinte: Neguinho trabalha num jornal ou numa revista e tem como função produzir ilustrações para textos escritos por outras pessoas, gente que ele talvez nem conhece. Já pararam pra pensar um pouquinho na barra que é isso? Pois então parem. Não é mole. O fulano recebe umas laudas, lê aquilo tudo, e depois tem de bolar uma interpretação plástica ou versão visual do que está escrito, e da maneira como ele conseguiu compreender, pois, também ter isso, o texto pode ser uma daquelas coisas experimentais, de vanguarda, anti-texto, tão herméticas, tão meta/trans-paratextual/inter-semióticas que só mesmo quem escreveu entende, ou se ilude pensando que entende. Ou então as referidas laudas vêm naquele estilo soporlfe-ro-paquidérmico de tese de mestrado, intragavelmente tedioso, todo cheio de cortes epistemológicos e contextualizações dialéticas. Mas mesmo quando o texto é claro, elegante, fluente, brilhante e comunicativo, ainda assim não é mole. O ilustrador não pode tomar o tema demasiado ao pé-da-letra e sair simplesmente reproduzindo em figuras e imagens tudo o que está escrito, porque vai se tornar óbvio, redundante, supérfluo, e portanto dispensável. E at então, pra que ilustração? Também não pode se conceder excessivas liberdades e criar o que lhe vem à cabeça, independente do que devia ilustrar, porque neste caso a ordem das coisas estaria subvertida, o vice tomaria o lugar do versa, e seria preciso depois procurar alguém para escrever um texto que ilustrasse a ilustração. Tudo isto é para que vocês possam ter uma vaga e remota idéia do que é o oficio de ilustrador. Este trabalhador do imaginário alheio exerce uma profissão que, como a mais antiga, não pode se dar ao luxo ou capricho de ficar rejeitando tarefas, bater o pé e dizer: "De jeito nenhum, assim eu não topo". Ou: "Nem pensar, isto eu não faço". E não é só fazer tudo; tem uns que além de fazer, fazem no capricho. E arrasam. Venâncio Pinheiro, ilustrador deste Caderno de Encartes, é um dos tais. Vocês já notaram o talento da figura. Tem vezes mesmo em que ele extrapola, e abusa do direito de ser criativo. Um despautério, como dizem os lusitanos. E olhem que além das dificuldades já citadas o ilustrador de jornal encontra ainda outras, peculiares ao seu meio de expressão; em jornal não dá para se inventar muito requinte, muito riquifife. Há o problema da ausência das cores, as limitações da' pastosa tinta de impressão, as barreiras de indefinição e pouco contraste impostas pela porosidade do papel e, principalmente, a eterna pressa, o corre-corre, o ritmo 78 rotações da redação/editoração. Pois Venâncio enfrenta impávido todos estes poréns e exibe semanalmente a sua inventividade, o preto-no-branco. Suas ilustrações têm a dupla virtude de referir-se com propriedade e fidedignidade ao espirito do texto-mote, ao mesmo tempo em que consegue acrescentar algo pessoal, a griffe de um artista sensível, de linguagem plástica extremamente ágil e atual, e bastante seguro dos meios expressivos disponíveis que como vimos, no caso de ilustração para jornal, são forçosamente limitados; já o que não parece ter limites é a sua capacidade de combiná-los e potencializá-los.
Eládío Barbosa é escritor e professor do Departamento de Educação da UFRN.
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